domingo, 29 de maio de 2016

A MENINA PAGÃ I

Seria cinco horas da manhã, a julgar pelas estrelas e o movimento das meninas do internato. Elas se levantavam e arrumavam-se nos banheiros para ir às orações na capela.




Josie segue em direção a umas das janelas embaçadas de neblinas do edifício secular e observa o jardim repleto de flores brancas, apagando com as mãos o suor da vidraça.



Entre os dois dormitórios há uma janela de madeira bruta, arrancada de um jequitibá, que, de tão grande, mais parece uma pequena porta. Dali pode-se observar a capela. E lá vai Josie, na escuridão da madrugada, tateando pelas paredes, Segue em direção ao altar por um tapete vermelho, sentindo-se vigiada por uma minúscula luz verde lançada por um abajur. “Esta luz significa a presença de Deus”, conforta-se, inocente.



Josie abre a porta que dá para o jardim proibido, senta-se no banco de ferro branco com seu poncho azul e vermelho, a touca multicolorida na cabeça, sente o vento gelado passar sobre sua face e arrepia-se, como se tocada por um espírito maligno como diziam as religiosas daquela casa abençoada.



Mas, por alguns minutos, nada importa. Josie quer ficar admirando as rosas. As flores estão com as pétalas cheias de orvalho. Os beija-flores chegam com os primeiros raios de sol, sem perceber a presença de Josie,com o qu paralisada e encantada com o quadro movimentado.



O coral das meninas vem aos seus ouvidos. O padre já começou as orações. Josie se assusta, olha a estátua de gesso de nossa Senhora que fica bem no centro do jardim, “O que fazer”, pensa Josie.



Ela segue devagar até umas das portas do jardim que, para a sua surpresa, está aberta. Sem que ninguém perceba, entra passando pela banca, uma sala reservada para estudos que mais parece uma biblioteca, e segue para o internato. Sobe as escadas rumo aos refeitórios das irmãs onde a mesa está posta, repleta de guloseimas.



Ela não resiste e pega algumas bolachas de chocolate. Curiosa, como todas as crianças, vai até um dos quartos das freiras, entra e se surpreende com a irmã Bezerra, ela que passa o dia cuidando das meninas da escola, A irmã se assusta, pois está com os seios de fora, vestindo apenas suas cerolas brancas e enormes. Josie corre, se tranca no banheiro e começa a rir.



Batem na porta do banheiro.



- Josie, vamos abre a porta ou vai ficar sem café.



Josie abre a porta sem saber o que lhe espera, pois Alcione, também aluna da escola, a convida a seguir para o dormitório. Ela é a aluna mais antiga, foi criada desde bebê pelas irmãs, é uma menina negra, gorda e muito bonita.



- Vamos Josie tira a roupa e entre no banheiro.



Assustada ela obedece, Alcione, com um cinto de couro, começa bater nas suas costas e pernas Depois da surra ela coloca seu avental quadriculado, vestimenta diária de todas as meninas. Alcione a tranca no banheiro por todo o dia, sem alimentação. Só à noite, depois que todas as meninas foram dormir, a imã Bezerra a leva para a enfermaria,



Josie passa a noite toda aos cuidados da irmã enfermeira, mas como se não bastasse a surra ela pega uma gripe muito forte e fica duas semanas internada com os lábios e as vias respiratórias feridas, alimentando-se por um canudo.



Josie acreditava que Deus não gostou do que ela havia feito e por isso estava tão doente. A irmã Lima, outra enfermeira, passava a noite na enfermaria. Sua cama era toda cercada por um lençol branco, pois não podíamos vê-la dormindo.



A freira tosou os cabelos de Josie, deixando-a com o couro cabeludo pelado. “Agora está bonita não parece uma endiabrada, mas vai passar a noite chupando o rabo do diabo”.



Josie tinha muito medo do diabo, mas nunca imaginou que apanharia tanto. Certa vez ficou de castigo, ajoelhada sobre o milho, por duas horas. Foi num domingo à tarde no retiro das irmãs que fica nas montanhas de Friburgo. As meninas podiam ficar livres, subir nos pés de pêssegos e jabuticabas. Era uma farra. Do alto das árvores viam o riacho de águas claras e a deliciosa piscina. Josie e quatro meninas mergulharam na piscina, também proibida, e aí o castigo.



Josie pensa na dor do joelho, fecha os olhos e dorme, mas sonha com os anjos de cabelos encaracolados e roupas compridas. Alguns são verde e azul e outros brancos. As asas ficam batendo em volta de sua cama, protegendo-a do mal





















terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Descadeirada

Há anos me prometo uma vida mais acomodada, tanto que neste 2013 hei de ter uma cadeira de balanço, o banco da velha dona de casa, cansada de estar em pé amassando alho, , descancando cebolas, descamando peixe e pintando uns panos enquadrados em paus. Minhas telas não seriam tão teimosas, fossem pintadas comigo sentada.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

ENITA III CHÃO RUBRO


O ancião Makurap abre sua mão direita e torna a fechá-la.
Em 1989, na terra indígena dos Mekens, no Sul de Rondônia, ele diz.


-Olha, parente, como essa terra é bonita!

E espreme um punhado de terra fofa e vermelha fazendo escorrer entre os dedos um líquido sangrento como suco de açaí. Terra rica em nutrientes para os cafezais, a soja, o cacau, a pimenta-do-reino, lavouras que começam a mudar a paisagem do Sul de Rondônia no fim dos 1980.

- A Funai quer que a gente vá embora daqui. Eu não quero ir. Nós temos outros parentes Makurap morando longe, em outra reserva, mas eu quero ficar. Até aonde me lembro, da memória dos meus avós, todos nós nascemos aqui. Eu falo para meus filhos. Não vão embora, fiquem. A Funai diz que vai ser bom, mas o que eles querem é ficar com as nossas terras. Eu falo com todos para que não abandonem. Veja, Enita, essa terra não precisa do adubo que os fazendeiros usam, tudo que plantamos cresce muito e sadio. A Funai diz para vendermos as terras aos madeireiros, mas eu não quero vender nossas terras, eu quero ficar.

Enita respira fundo e pensa nas palavras para encorajar o velho. Lembra de uma história que ouviu em suas andanças pela região.

- Ouvi dizer que uns cientistas russos andaram pesquisando a terra e concluíram que é mais rica do que a mais rica das terras férteis de todos os países da União Soviética, tão equilibrada é a quantidade de nitrogênio, fosfato e outros minerais necessários para a agricultura. É mais valiosa que o ouro, comentou Enita.

O ancião Makurap sentou-se em um toco de árvore serrada pelos madeireiros e Enita continuou em pé admirando o horizonte azul, branco e rosa das nuvens recebendo os últimos raios de sol.

- O Senhor se lembra daquele casal de antropólogos que veio num avião?

-Lembro.

-Eles assinaram um documento para a FUNAI afirmando que aqui não há indígenas, que esta área não precisa ser demarcada.

-Você leu o documento, Enita?
-Voce sabe o nome deles?
-Eu sei sim! O nome deles...
-São bem conceituados, famosos.


-Eu li, sim! Dizem que as madeireiras podem continuar a derrubada, autorizando até as estrangeiras, mesmo que vocês não queiram. Depois que a madeira acabar, as terras serão vendidas para as fazendas.

-Então é por isso que estão nos ameaçando de jogar bombas de avião para deixá-los entrar.

-Quem disse isso?

-Os madeireiros. Se a gente não os deixar entrar, vão matar a gente.

-O documento diz que aqui não vive mais do que meia dúzia de pessoas e sem traços de cultura indígena.

O velho voltou a espremer na mão direita a terra rubra e estendeu o braço mirando a estrada onde roncava um caminhão de toras.

-Eles querem ver jorrar sangue.

Ambos cruzaram os braços, entreolharam-se e ficaram a ouvir, ao longe, o motor do caminhão que ainda zunia enquanto as sombras da noite baixavam sobre a aldeia. Um acauã invisível entoou seu canto lúgubre. Enita estremeceu.

- Vamos jantar, disse o ancião.
Autora Iracema forte Caingang
Todos os direitos reservados

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Enita III Chão rubro

Enita I  II III  História verídica.  Foto Google 
O ancião Makurap abre sua mão direita e torna a fechá-la.
Em 1989, na terra indígena dos Mekens, no Sul de Rondônia, ele diz.


-Olha, parente, como essa terra é bonita!

E espreme um punhado de terra fofa e vermelha fazendo escorrer entre os dedos um líquido sangrento como suco de açaí. Terra rica em nutrientes para os cafezais, a soja, o cacau, a pimenta-do-reino, lavouras que começam a mudar a paisagem do Sul de Rondônia no fim dos 1980.

- A Funai quer que a gente vá embora daqui. Eu não quero ir. Nós temos outros parentes Makurap morando longe, em outra reserva, mas eu quero ficar. Até aonde me lembro, da memória dos meus avós, todos nós nascemos aqui. Eu falo para meus filhos. Não vão embora, fiquem. A Funai diz que vai ser bom, mas o que eles querem é ficar com as nossas terras. Eu falo com todos para que não abandonem. Veja, Enita, essa terra não precisa do adubo que os fazendeiros usam, tudo que plantamos cresce muito e sadio. A Funai diz para vendermos as terras aos madeireiros, mas eu não quero vender nossas terras, eu quero ficar.

Enita respira fundo e pensa nas palavras para encorajar o velho. Lembra de uma história que ouviu em suas andanças pela região.

- Ouvi dizer que uns cientistas russos andaram pesquisando a terra e concluíram que é mais rica do que a mais rica das terras férteis de todos os países da União Soviética, tão equilibrada é a quantidade de nitrogênio, fosfato e outros minerais necessários para a agricultura. É mais valiosa que o ouro, comentou Enita.

O ancião Makurap sentou-se em um toco de árvore serrada pelos madeireiros e Enita continuou em pé admirando o horizonte azul, branco e rosa das nuvens recebendo os últimos raios de sol.

- O Senhor se lembra daquele casal de antropólogos que veio num avião?

-Lembro.

-Eles assinaram um documento para a FUNAI afirmando que aqui não há indígenas, que esta área não precisa ser demarcada.

-Você leu o documento, Enita?
-Voce sabe o nome deles?
-Eu sei sim! O nome deles...
-São bem conceituados, famosos.


-Eu li, sim! Dizem que as madeireiras podem continuar a derrubada, autorizando até as estrangeiras, mesmo que vocês não queiram. Depois que a madeira acabar, as terras serão vendidas para as fazendas.

-Então é por isso que estão nos ameaçando de jogar bombas de avião para deixá-los entrar.

-Quem disse isso?

-Os madeireiros. Se a gente não os deixar entrar, vão matar a gente.

-O documento diz que aqui não vive mais do que meia dúzia de pessoas e sem traços de cultura indígena.

O velho voltou a espremer na mão direita a terra rubra e estendeu o braço mirando a estrada onde roncava um caminhão de toras.

-Eles querem ver jorrar sangue.

Ambos cruzaram os braços, entreolharam-se e ficaram a ouvir, ao longe, o motor do caminhão que ainda zunia enquanto as sombras da noite baixavam sobre a aldeia. Um acauã invisível entoou seu canto lúgubre. Enita estremeceu.

- Vamos jantar, disse o ancião.
Autora Iracema forte Caingang
Todos os direitos reservados

Foto Iracema forte

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Enita II Alumínio


-
    Enita l  Enita ll  História verídica. Foi  contada  para mim pelos mais velhos da  reseva indígena MEKENS.


 A velha Sakirap disse.
-Todos meus parentes morreram.
Os Sakirap são uma etnia indígena de raros viventes no Sul de Rondônia. Ela não sabe, mas foi a catapora quem dizimou seu povo. Fracos e com muita febre, não tinham forças para plantar como queriam os homens do Serviço de Proteção Indígena, a Funai de antigamente. Os agentes do SPI os castigavam amarrados nos troncos de árvores sem água e comida
-A senhora vem todos os dias, bem cedo, para este  igarapé?
-Venho sim, gosto muito, conversar com os parentes, eles cantam para mim.
Enita a fitou, pesarosa.
- A senhora tem muitos filhos?
-Eu tinha uma filha, mas morreu
Enita não quer continuar a conversa, pensa que seria muito ruim falar da filha morta e tenta mudar de assunto. Mas, dona Iari quer continuar a conversa.
-Minha filha homem do SPI matou 
- Como foi que ele matou?
-Minha filha estava esperando menino, homem do SPI falava para ela-  vai trabalhar vagabunda, vai plantar- e quando ela não ia, eles  amarravam ela no pé da arvore sem comida.
-E ninguém fazia nada dona Iari? Eram muitos?
-Sim, mas nossos homens estavam fracos, morrendo com muita febre.
Enita escuta enquanto ajuda a índia a  lavar suas panelas de alumínio.
A velha Sakirap pede para Enita ouvir, põe a mão direita em concha sobre o ouvido e diz que os parentes cantam.
Enita ausculta. O som,parece sair do oco das árvores, melancólico e compungido.
 Terminando de  lavar as louças,Dona Iari levanta-se e vai descendo do jirau em direção à água chamando Enita para banhar-se. O vestido estampado de pequenas folhas verdes e desbotado de Dona Iari estava todo molhado. 

 Enita diz que não quer nadar, por estar muito frio,mas Iari insiste. Enita, aos poucos, mergulha.
Mais tarde, aquecendo-se no fogão a lenha, Enita é servida com um prato de bolinhos de cará  e carne de queixada defumada, café e  castanhas do Pará.
-Parente não vai escrever história que eu estou contando?
-Vou sim, respondeu Enita.

Autora Iracema forte Caingang
Todos os direitos reservados

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Todos sabiam, menos Enita I


       Rondônia Amazônia, Brasil 1987.         
Enita desce a serra da reserva indígena dos Mequéns. A trilha é larga, feita por grandes máquinas na indústria madeireira. Mesmo assim, a mata ainda é densa e sombria e o ruído de passos humanos nas folhas secas se sobressai entre os gorjeios de aves e estripulias de macacos. Enita sente medo, pois nunca andara só por aquela floresta. Está acompanhada apenas por sua espingarda, presa aos ombros por uma alça de
tecido de algodão fiado na aldeia.   Enita é uma grande atiradora. Aprendeu a manusear uma espingarda com os franceses que caçavam puma no Chaco do Paraguai, mas isso é outra história. Aqui vamos falar sobre esta trilha e sobre os Mequéns, já que a trilha não foi construída naturalmente sob a pisada dos índios e nem os Mequéns existem mais. Foram todos exterminados, deixando apenas o seu nome como legados para aquelas terras. .

A larga trilha foi feita para a pisada dos tratores que puxavam toras e mais toras das árvores mais belas e frondosas da floresta. Árvores que o tempo levou mais de um século para cultivar e embelezar a terra. Aguanas, ou mogno, como preferem alguns; cerejeiras, castanheiras – desta todos conhecem o fruto, poucos a árvore, pois ela está desaparecendo – e outras que depois vão virar mesas, portas, pisos e cadeiras nas casas dos mais ricos deste planeta.

Seguindo nestas passadas Enita vai demorar meia hora para chegar na Aldeia o que quer dizer que a aldeia está a dois quilômetros e meio dali, pois um dia ela ouviu um professor dizer que o homem anda numa estrada a cinco quilômetros por hora sem correr. Se fosse na mata fechada seria incalculável, mas esta trilha é como uma estrada aberta para um fim criminoso pela Aldeia Serraria. Isso mesmo, Aldeia Serraria, pode? Pois foi uma serraria altamente sofisticada que mandou construir esta trilha. Ou estrada?

Graças a Deus, agora as máquinas estão paradas se enferrujando. Mas ela ainda se recorda do barulho das serras elétricas movimentadas por um gerador e chega a ouvir o zunido das máquinas o que a distrai e espanta seu medo de cruzar com uma onça faminta pelo caminho. E, assim pensando, Enita chega à Serraria e, para sua surpresa, não ouve sequer o alarido das pessoas. Está deserta a Aldeia dos Makurap. As três casas de paxiúba cobertas por palmeiras estão abandonadas.

Enita atravessa a aldeia e vai até o igarapé que circunda as casas onde encontra uma velha indígena makurap solitária lavando panelas de alumínio num jirau, outra novidade trazida pela serraria.

-Oi, cadê o pessoal, pergunta Enita.

-Os homens foram à caça e as mulheres nas colocações dos seringueiros.

Enita ajuda a mulher a encher uma bacia com as panelas limpas e a coloca sobre um banco de madeira. E a velha Makurap lhe estende pequenas espigas de milho para ela debulhar.

Enita contempla as espigas, tão pequenas e naturais, de grãos tão brancos e diminutos, inexistentes fora das reservas indígenas, depois de inúmeras transformações que sofreram ao longo de sua domesticação pelo homem branco. É, os homens brancos transformam tudo, para o bem ou para o mal.

-É para pipoca, disse a velha Makurap e Enita provou mais tarde a mais deliciosa pipoca que jamais imaginara comer um dia.

A pipoca foi saboreada por Enita sobre um único banco no centro da aldeia. A velha makurap ao seu lado, em silêncio, contemplava uma montanha totalmente coberta de árvores onde os tratores não conseguiram levar a trilha.

-Você já subiu aquela montanha?, perguntou Enita.

Claro que a velha já subira a montanha e que a montanha tinha um monte de histórias, mas Enita não sabia o que estava provocando.

-Lá em cima tem uma cachoeira cercada por ramas de flores cheirosas e uma mulher morando em uma cabana, uma mulher bonita que às vezes se torna feia.

- Como assim, porque às vezes é feia?

-A mulher sabe quando tem parente doente, então ela entra por um buraco na terra e chega toda molhada. Entra no corpo do makurap doente, leva o espírito de makurap doente, às vezes leva dias, então makurap volta bom.

E a velha retorna ao seu silêncio mirando a montanha até que aponta com a mão para uns troncos enterrados e recomeça a falar.

-Cada tronco daquele é um makurap morto.

-Enita levanta-se e consegue avistar três troncos. Se ali é o cemitério então deve ter muitos mortos.

A velha Makurap responde que ali tem muitos mortos, mas não era ali que eles enterravam seus mortos.

-Ele estão enterrados lá, mas nem sempre foi assim. Foi um padre que começou a enterrar nossos mortos. Ele falou que era errado queimar os corpos. Então alguns parentes enterraram os mortos e marcaram o lugar.

- E por que vocês queimavam os mortos?

- Antigamente a mulher da montanha vinha e curava os doentes e quando ela não conseguia, ela ficava feia e chorava muito e ficava dias andando nos lugares que o parente morto gostava de andar então as mulheres vinham e abraçavam o corpo do parente morto e cantavam. Então eles queimavam os parentes e as mulheres chamavam os homens e cada comia um pouco daquelas cinzas.

E a velha makurap faz uma pausa para olhar a montanha, alta e comprida, mas logo recomeça.

- As mulheres faziam potes de barro para colocar as cinzas, depois o parente enterrava dentro de casa. É que a mulher da montanha sabe tudo, sabe curar, saber ouvir e sabe quando a morte vai chegar. A água dos rios e as árvores fazem barulho avisando.

E, cobrindo um ouvido com a palma da mão, disse. “Escuta, você pode ouvir o barulho? Está diferente, não está?”

Enita ficou quieta, tentando ouvir e assim ficaram as duas dirigindo os ouvidos para o som que vinha da floresta. Alguns minutos depois chegou o neto da velha makurap com um porco-do-mato morto pendurado nas costas. Ela imediatamente se levantou chamando Enita para ir até sua casa. Enita foi, enquanto a velha atiçava o fogão de lenha para a grande caça.

Enita despede-se dizendo que vai para a Aldeia do Laranjal e que voltaria para vê-la no retorno. Enita deu-lhe um abraço e um beijo e seguiu atravessando a pequena aldeia. Na saída pode ver o porcão do mato já pendurado em um tronco para ser tratado e o jovem caçador olhando satisfeito para a presa.

Sempre com a espingarda atada no ombro direito, Enita seguiu a trilha e meia hora mais tarde avistou a aldeia Laranjal e o índio boliviano Chumita, filho de um caucheiro que resolveu atravessar a fronteira para viver no lado brasileiro. Apesar da distância que os separava, Enita não teve dúvida de que era Chumita, pois não havia outro que usasse roupas tão remendadas e com remendos tão peculiares, todos quadrados e coloridos. Mas algo de estranho acontecia com Chumita, pois ele estava tropeçando e tinha as mãos cobrindo os olhos, tapando totalmente a visão. Enita seguiu Chumita que entrava em uma das casas da aldeia, também praticamente vazia naquela hora. Enita era muito amiga da mãe de Chumita, as duas passavam horas conversando e os relatos da índia boliviana eram tão ricos e detalhados que não caberiam nem num um livro bem grosso. Dona Chumita, como era conhecida, costumava receber Enita sempre com um prato na mão, muitas vezes de arroz cozido no leite de castanha acompanhado com um pedaço de peixe ou carne de caça. Mas desta vez Enita encontra o chão coberto de sangue e Chumita colocando sangue pela boca e pelo nariz e dona Chumita lhe dando água. E ele mostra a perna dizendo que foi picado por uma surucucu. Enita se desespera e sai correndo e, de tão afobada, nem percebe que esqueceu a espingarda. Mas continua correndo, passa pelos Makurap e, ofegante, começa a subir a montanha e pensa como seria bom se a milagrosa mulher estivesse por ali para salvar Chumita, mas não tem tempo para procurar uma lenda, quer chegar logo à serraria para pegar soro antiofídico, voltar e curar Chumita e quanto mais corre, mais alta fica a montanha e ela resolve pegar um atalho, passando por dentro da floresta. Nem medo sentia, sentia raiva dela mesmo por não andar com sua caixa de primeiros socorros.

Correndo como quem disputa uma maratona, Enita viu que o sol já se punha por trás da serra e a floresta se escurecia quando ouviu o esturro da onça. Continuou a correr e quanto mais corria percebia que mais próximo ficava o esturro da onça. Molhada de suor, quando estava perto de entregar-se, parou e percebeu que todos os homens da aldeia já estavam a postos com suas espingardas para atirar na onça pintada. E Enita pode ver parte do animal por entre as folhagens. Os indígenas mandaram que Enita se movesse lentamente, nunca corresse dentro da floresta, pois as onças costumam a perseguir os movimentos rápidos.

Refeita do susto, ouviu os índios dizerem-lhe que Chumita já estava bem. O estar bem, na linguagem dos índigenas, significa que Chumita já tinha sido vencido pelo veneno mortal da surucucu e repousava.

Juntando-se a Enita todos subiram a serra lentamente, sempre seguidos pela onça e silenciosamente entraram na Aldeia Sakurapa onde Enita foi convidada para jantar na casa de uma senhora índigena. Encontra a mulher junto a três crianças, uma delas mamando em seus peitos. Estão todos em silêncio comendo carne de caça com farinha. As crianças tomam um caldo ralo com carne de uma ave chamada biguatinga. Ninguém fala sobre Chumita até a chegada de um homem alto e forte que, plantado na entrada da casa, começou a narrar.

-Chumita estava em um roçado colhendo arroz e resolveu ir embora. No meio do caminho percebeu que esquecera o facão e retornou para pegá-lo quando foi picado pela cobra. Recebeu uma picada acima do joelho. O veneno se espalhou rapidamente e o deixou cego. Não havia plantas ou soro que o curasse. E a mãe dele ainda lhe deu água, não podia, pois ajuda o veneno a se espalhar. Embora a sêde seja ainda maior quando a gente é ferido por uma cobra, não se deve tomar água.

Curiosa, Enita quis saber como o velho forte sabia mais do que ela detalhes sobre a morte sobre a morte de Chumita.

A velha makurap continuou a história.

-Enita, quando você descia a serra, ele estava descendo com você. Quando você subia correndo, ele corria com você. Ele é o guardião da floresta. Sem você perceber ele a acompanhou este tempo todo.

Enita deixou a casa atordoada com os acontecimentos. Seguiu para um velho barracão da serraria onde entre 10 quartos há um imenso salão entrelaçado por redes. Nas prateleiras, observa dezenas de garrafas de cachaça e vidros de perfumes vazios. Tanto a cachaça como os perfumes foram bebidos pelos índigenas. Enita deita-se em uma rede, mas não consegue pegar no sono. Fica ouvindo o piar das aves noturnas até o dia clarear. Ao amanhecer encontra o guardião da floresta que a convida para um passeio pela serra até o interior da floresta. No caminho ela avista um lençol branco pendurado nas folhas de uma árvore, mas quando se aproxima nota que o lençol, na verdade, é uma gigantesca teia de aranha, algo que nem a mais habilidosa artesã haveria de tecer, uma fina e delicada obra de arte que jamais adornará o enxoval do mais nobre dos palácios. Ao mesmo tempo, sente-se enredada pela fascinante peça e foi preciso um chamado do velho guardião para que voltasse para seu rumo, a montanha de árvores onde vive a mulher bonita e feia.

Seguem um fio de água que desce entre as pedras e chegam a uma cachoeira onde sentam - se e ficam a contemplar. O velho dá-lhe uma rama de folhas e pede que ela cheire, um perfume muito agradável, mas indescritível e pede que ela o leve para a mãe de Chumita. Depois de um banho nas águas geladas da cachoeira ambos voltam pelo mesmo caminho e, ao aproximar-se da aldeia, o velho desaparece. Enita segue até a casa de Dona Chumita onde a encontra sentada tecendo fios de tucum para fazer bolsas. Senta-se junto dela e lhe entrega as ramas de folhas cheirosas que ela aprecia e guarda junto a outras ramas perfumadas em uma bolsa. Depois volta para o banco e continua tecendo os fios. E Enita ao seu lado.

Autora Iracema forte Caingang.
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