terça-feira, 29 de setembro de 2009

Todos sabiam, menos Enita I


       Rondônia Amazônia, Brasil 1987.         
Enita desce a serra da reserva indígena dos Mequéns. A trilha é larga, feita por grandes máquinas na indústria madeireira. Mesmo assim, a mata ainda é densa e sombria e o ruído de passos humanos nas folhas secas se sobressai entre os gorjeios de aves e estripulias de macacos. Enita sente medo, pois nunca andara só por aquela floresta. Está acompanhada apenas por sua espingarda, presa aos ombros por uma alça de
tecido de algodão fiado na aldeia.   Enita é uma grande atiradora. Aprendeu a manusear uma espingarda com os franceses que caçavam puma no Chaco do Paraguai, mas isso é outra história. Aqui vamos falar sobre esta trilha e sobre os Mequéns, já que a trilha não foi construída naturalmente sob a pisada dos índios e nem os Mequéns existem mais. Foram todos exterminados, deixando apenas o seu nome como legados para aquelas terras. .

A larga trilha foi feita para a pisada dos tratores que puxavam toras e mais toras das árvores mais belas e frondosas da floresta. Árvores que o tempo levou mais de um século para cultivar e embelezar a terra. Aguanas, ou mogno, como preferem alguns; cerejeiras, castanheiras – desta todos conhecem o fruto, poucos a árvore, pois ela está desaparecendo – e outras que depois vão virar mesas, portas, pisos e cadeiras nas casas dos mais ricos deste planeta.

Seguindo nestas passadas Enita vai demorar meia hora para chegar na Aldeia o que quer dizer que a aldeia está a dois quilômetros e meio dali, pois um dia ela ouviu um professor dizer que o homem anda numa estrada a cinco quilômetros por hora sem correr. Se fosse na mata fechada seria incalculável, mas esta trilha é como uma estrada aberta para um fim criminoso pela Aldeia Serraria. Isso mesmo, Aldeia Serraria, pode? Pois foi uma serraria altamente sofisticada que mandou construir esta trilha. Ou estrada?

Graças a Deus, agora as máquinas estão paradas se enferrujando. Mas ela ainda se recorda do barulho das serras elétricas movimentadas por um gerador e chega a ouvir o zunido das máquinas o que a distrai e espanta seu medo de cruzar com uma onça faminta pelo caminho. E, assim pensando, Enita chega à Serraria e, para sua surpresa, não ouve sequer o alarido das pessoas. Está deserta a Aldeia dos Makurap. As três casas de paxiúba cobertas por palmeiras estão abandonadas.

Enita atravessa a aldeia e vai até o igarapé que circunda as casas onde encontra uma velha indígena makurap solitária lavando panelas de alumínio num jirau, outra novidade trazida pela serraria.

-Oi, cadê o pessoal, pergunta Enita.

-Os homens foram à caça e as mulheres nas colocações dos seringueiros.

Enita ajuda a mulher a encher uma bacia com as panelas limpas e a coloca sobre um banco de madeira. E a velha Makurap lhe estende pequenas espigas de milho para ela debulhar.

Enita contempla as espigas, tão pequenas e naturais, de grãos tão brancos e diminutos, inexistentes fora das reservas indígenas, depois de inúmeras transformações que sofreram ao longo de sua domesticação pelo homem branco. É, os homens brancos transformam tudo, para o bem ou para o mal.

-É para pipoca, disse a velha Makurap e Enita provou mais tarde a mais deliciosa pipoca que jamais imaginara comer um dia.

A pipoca foi saboreada por Enita sobre um único banco no centro da aldeia. A velha makurap ao seu lado, em silêncio, contemplava uma montanha totalmente coberta de árvores onde os tratores não conseguiram levar a trilha.

-Você já subiu aquela montanha?, perguntou Enita.

Claro que a velha já subira a montanha e que a montanha tinha um monte de histórias, mas Enita não sabia o que estava provocando.

-Lá em cima tem uma cachoeira cercada por ramas de flores cheirosas e uma mulher morando em uma cabana, uma mulher bonita que às vezes se torna feia.

- Como assim, porque às vezes é feia?

-A mulher sabe quando tem parente doente, então ela entra por um buraco na terra e chega toda molhada. Entra no corpo do makurap doente, leva o espírito de makurap doente, às vezes leva dias, então makurap volta bom.

E a velha retorna ao seu silêncio mirando a montanha até que aponta com a mão para uns troncos enterrados e recomeça a falar.

-Cada tronco daquele é um makurap morto.

-Enita levanta-se e consegue avistar três troncos. Se ali é o cemitério então deve ter muitos mortos.

A velha Makurap responde que ali tem muitos mortos, mas não era ali que eles enterravam seus mortos.

-Ele estão enterrados lá, mas nem sempre foi assim. Foi um padre que começou a enterrar nossos mortos. Ele falou que era errado queimar os corpos. Então alguns parentes enterraram os mortos e marcaram o lugar.

- E por que vocês queimavam os mortos?

- Antigamente a mulher da montanha vinha e curava os doentes e quando ela não conseguia, ela ficava feia e chorava muito e ficava dias andando nos lugares que o parente morto gostava de andar então as mulheres vinham e abraçavam o corpo do parente morto e cantavam. Então eles queimavam os parentes e as mulheres chamavam os homens e cada comia um pouco daquelas cinzas.

E a velha makurap faz uma pausa para olhar a montanha, alta e comprida, mas logo recomeça.

- As mulheres faziam potes de barro para colocar as cinzas, depois o parente enterrava dentro de casa. É que a mulher da montanha sabe tudo, sabe curar, saber ouvir e sabe quando a morte vai chegar. A água dos rios e as árvores fazem barulho avisando.

E, cobrindo um ouvido com a palma da mão, disse. “Escuta, você pode ouvir o barulho? Está diferente, não está?”

Enita ficou quieta, tentando ouvir e assim ficaram as duas dirigindo os ouvidos para o som que vinha da floresta. Alguns minutos depois chegou o neto da velha makurap com um porco-do-mato morto pendurado nas costas. Ela imediatamente se levantou chamando Enita para ir até sua casa. Enita foi, enquanto a velha atiçava o fogão de lenha para a grande caça.

Enita despede-se dizendo que vai para a Aldeia do Laranjal e que voltaria para vê-la no retorno. Enita deu-lhe um abraço e um beijo e seguiu atravessando a pequena aldeia. Na saída pode ver o porcão do mato já pendurado em um tronco para ser tratado e o jovem caçador olhando satisfeito para a presa.

Sempre com a espingarda atada no ombro direito, Enita seguiu a trilha e meia hora mais tarde avistou a aldeia Laranjal e o índio boliviano Chumita, filho de um caucheiro que resolveu atravessar a fronteira para viver no lado brasileiro. Apesar da distância que os separava, Enita não teve dúvida de que era Chumita, pois não havia outro que usasse roupas tão remendadas e com remendos tão peculiares, todos quadrados e coloridos. Mas algo de estranho acontecia com Chumita, pois ele estava tropeçando e tinha as mãos cobrindo os olhos, tapando totalmente a visão. Enita seguiu Chumita que entrava em uma das casas da aldeia, também praticamente vazia naquela hora. Enita era muito amiga da mãe de Chumita, as duas passavam horas conversando e os relatos da índia boliviana eram tão ricos e detalhados que não caberiam nem num um livro bem grosso. Dona Chumita, como era conhecida, costumava receber Enita sempre com um prato na mão, muitas vezes de arroz cozido no leite de castanha acompanhado com um pedaço de peixe ou carne de caça. Mas desta vez Enita encontra o chão coberto de sangue e Chumita colocando sangue pela boca e pelo nariz e dona Chumita lhe dando água. E ele mostra a perna dizendo que foi picado por uma surucucu. Enita se desespera e sai correndo e, de tão afobada, nem percebe que esqueceu a espingarda. Mas continua correndo, passa pelos Makurap e, ofegante, começa a subir a montanha e pensa como seria bom se a milagrosa mulher estivesse por ali para salvar Chumita, mas não tem tempo para procurar uma lenda, quer chegar logo à serraria para pegar soro antiofídico, voltar e curar Chumita e quanto mais corre, mais alta fica a montanha e ela resolve pegar um atalho, passando por dentro da floresta. Nem medo sentia, sentia raiva dela mesmo por não andar com sua caixa de primeiros socorros.

Correndo como quem disputa uma maratona, Enita viu que o sol já se punha por trás da serra e a floresta se escurecia quando ouviu o esturro da onça. Continuou a correr e quanto mais corria percebia que mais próximo ficava o esturro da onça. Molhada de suor, quando estava perto de entregar-se, parou e percebeu que todos os homens da aldeia já estavam a postos com suas espingardas para atirar na onça pintada. E Enita pode ver parte do animal por entre as folhagens. Os indígenas mandaram que Enita se movesse lentamente, nunca corresse dentro da floresta, pois as onças costumam a perseguir os movimentos rápidos.

Refeita do susto, ouviu os índios dizerem-lhe que Chumita já estava bem. O estar bem, na linguagem dos índigenas, significa que Chumita já tinha sido vencido pelo veneno mortal da surucucu e repousava.

Juntando-se a Enita todos subiram a serra lentamente, sempre seguidos pela onça e silenciosamente entraram na Aldeia Sakurapa onde Enita foi convidada para jantar na casa de uma senhora índigena. Encontra a mulher junto a três crianças, uma delas mamando em seus peitos. Estão todos em silêncio comendo carne de caça com farinha. As crianças tomam um caldo ralo com carne de uma ave chamada biguatinga. Ninguém fala sobre Chumita até a chegada de um homem alto e forte que, plantado na entrada da casa, começou a narrar.

-Chumita estava em um roçado colhendo arroz e resolveu ir embora. No meio do caminho percebeu que esquecera o facão e retornou para pegá-lo quando foi picado pela cobra. Recebeu uma picada acima do joelho. O veneno se espalhou rapidamente e o deixou cego. Não havia plantas ou soro que o curasse. E a mãe dele ainda lhe deu água, não podia, pois ajuda o veneno a se espalhar. Embora a sêde seja ainda maior quando a gente é ferido por uma cobra, não se deve tomar água.

Curiosa, Enita quis saber como o velho forte sabia mais do que ela detalhes sobre a morte sobre a morte de Chumita.

A velha makurap continuou a história.

-Enita, quando você descia a serra, ele estava descendo com você. Quando você subia correndo, ele corria com você. Ele é o guardião da floresta. Sem você perceber ele a acompanhou este tempo todo.

Enita deixou a casa atordoada com os acontecimentos. Seguiu para um velho barracão da serraria onde entre 10 quartos há um imenso salão entrelaçado por redes. Nas prateleiras, observa dezenas de garrafas de cachaça e vidros de perfumes vazios. Tanto a cachaça como os perfumes foram bebidos pelos índigenas. Enita deita-se em uma rede, mas não consegue pegar no sono. Fica ouvindo o piar das aves noturnas até o dia clarear. Ao amanhecer encontra o guardião da floresta que a convida para um passeio pela serra até o interior da floresta. No caminho ela avista um lençol branco pendurado nas folhas de uma árvore, mas quando se aproxima nota que o lençol, na verdade, é uma gigantesca teia de aranha, algo que nem a mais habilidosa artesã haveria de tecer, uma fina e delicada obra de arte que jamais adornará o enxoval do mais nobre dos palácios. Ao mesmo tempo, sente-se enredada pela fascinante peça e foi preciso um chamado do velho guardião para que voltasse para seu rumo, a montanha de árvores onde vive a mulher bonita e feia.

Seguem um fio de água que desce entre as pedras e chegam a uma cachoeira onde sentam - se e ficam a contemplar. O velho dá-lhe uma rama de folhas e pede que ela cheire, um perfume muito agradável, mas indescritível e pede que ela o leve para a mãe de Chumita. Depois de um banho nas águas geladas da cachoeira ambos voltam pelo mesmo caminho e, ao aproximar-se da aldeia, o velho desaparece. Enita segue até a casa de Dona Chumita onde a encontra sentada tecendo fios de tucum para fazer bolsas. Senta-se junto dela e lhe entrega as ramas de folhas cheirosas que ela aprecia e guarda junto a outras ramas perfumadas em uma bolsa. Depois volta para o banco e continua tecendo os fios. E Enita ao seu lado.

Autora Iracema forte Caingang.
Todos os direitos reservados