quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Um presente para os visitantes

Um presente para os visitantes No centro de São Gabriel da Cachoeira há uma grande loja que comercializa artesanatos indígenas. A mulher que atende aos clientes pertence a uma das diversas etnias nativas da região, mas não produz artesanato, faz apenas o comércio de peças adquiridas junto às comunidades tradicionais. Enquanto visitava sua loja, notei que ela ainda é bastante jovem e muito atenciosa. Ela me atendeu com educação e muita simpatia, mas senti que se colocava em uma posição de distanciamento como se estivesse a confrontar-se com uma representante de um povo adversário. É natural do ser humano em cidades isoladas. Precaução e sopa não fazem mal a ninguém. Eu não sou daqui, portanto, me considera uma estranha. Embora eu tenha nas veias o sangue da etnia Caingang, uma nação sulista, sobre a qual ainda não falei e que talvez ela pouco saiba a respeito. Não existe tensão entre nós, mas uma expectativa angustiante e recorrente, sempre que pessoas de povos nativos se deparam com as primeiras apresentações e as revelações sobre nossas origens. Vou chamar esta mulher de Maria, seu nome fictício para o desenrolar desta história. Maria se aproxima, sorri e graciosamente oferece ajuda. Eu não imaginava que teria de me apresentar, mostrar minha cara, falar sobre a minha vida, pois estava apenas visitando uma loja, como faria em qualquer lugar do mundo, mas aqui me sinto ainda mais diferente, uma cliente especial. Sinto-me vigiada. Não imaginava que fosse chamar a atenção numa cidade onde 90% da população possuem traços indígenas. Estou em uma ilha de florestas e rios, povoada por diversos povos originais das américas, mas não pertenço a nenhuma das etnias desta região, embora sendo de um mesmo país. Sou uma estranha e por onde eu andar, embora estando numa cidade povoada em sua esmagadora maioria por indígenas, ainda sou uma estranha, como se estivesse no Rio de Janeiro, em Sorocaba ou São Paulo. Enquanto eu olhava na loja de Maria as preciosas obras artesanais das diversas etnias de São Gabriel, a loja foi invadida por um grupo de índios eufóricos e barulhentos dizendo precisar, urgente, de algum objeto para doar como souvenir, um agrado, um presente, para uma importante autoridade que chegara de Brasília, a capital do Brasil. Maria montou um kit com um cesto feito com folhas de palmeiras e um vaso de cerâmica produzido manualmente por um de seus diversos povos e culturas desta imensa comunidade indígena brasileira. Este episódio não sai de minha cabeça e fica a ilustrar todo o conhecimento que fui adquirindo enquanto pesquiso sobre a viagem de Sorocaba, no interior de São Paulo a São Gabriel da Cachoeira dia 27 de setembro passado. A negociação dos presentes na loja de Maria levaram meus pensamentos para dois séculos e meio atrás, aos anos 1760. Graças ao estudo de um cientista dos EUA chamado Robin M. Wright, que vive no Brasil e leciona na Unicamp, uma importante universidade brasileira. Wright é o primeiro cientista a estudar e a confrontar os relatos originais de antigos estudiosos à história oral dos povos atuais de São Gabriel. Ele constatou que toda a história que os povos remanescentes passam de pai para filho pode ser comprovada através de cartas e relatórios de oficiais da Coroa Portuguesa e de empresas particulares que navegavam pelo Rio Negro e seus afluentes para capturar e escravizar indígenas. Sim, a Coroa portuguesa também terceirizava o serviço de captura para empresários portugueses. Muitos destes empresários e os próprios oficiais do império usavam a tática de dar presentes aos índios, principalmente bebidas alcóolicas para conquistar a sua simpatia e fazê-lo pagar traindo o seu próprio povo ou levando-o à guerra contra povos vizinhos. Desta forma, colocavam Tukanos contra Barés e estes contra os Baniwa e assim enfraqueciam os exércitos guerreiros e enchiam os navios de escravos indígenas. Este texto de Robim Wright eliminou a dúvida que me atormentou quando coloquei os pés nas ruínas do Morro da Fortaleza e fiquei a indagar sobre quantos índios teriam trabalhado e morrido para erguer um edifício que seria a sua própria prisão? A pergunta está errada. O certo seria questionar quantas guerras entre índios aquelas fortificação assistiu até virar escombros. É certo que para chegar até o Alto Rio Negro os oficiais da Coroa tiveram primeiro que derrotar os índios Manaos, que habitavam a região onde hoje está a cidade de Manaus, a capital do Estado do Amazonas. E assim podemos ter uma ideia da grandiosidade das histórias ocultas desta linda região. O que não fariam os cineastas de Hollywood com as anotações do professor Wright? União de forças As guerras entre índios acabaram quando todos foram derrotados. A partir de 1985, com o fim do governo militar do Brasil e quando o Congresso Nacional estava prestes a redigir uma nova Constituição, os indígenas de todo o País começaram a se organizar e a cobrar por seus direitos, principalmente à demarcação de suas terras e a expulsão de invasores e suas fazendas de gado, café, cacau ou cana de açúcar. Em São Gabriel não existe mais guerras entre índios, hoje eles estão juntos na Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro (FOIRN). A entidade foi fundada em 1987 e reúne 90 associações de 23 povos originários de três municípios da região. Juntos ele constituem uma rede de agentes indígenas de manejo ambiental (Aimas) monitorando o clima e o meio ambiente na Bacia do Rio Negro. Promovem estudos interculturais e valorizam o conhecimento dos mais antigos sobre o território onde vivem. Hoje eles compartilham um plano de gestão territorial e ambiental (PGTAs) onde estabelecem metas para o presente e futuro em seu território ancestral, muito antes da chegada dos portugueses, e atualmente terra indígena demarcada de acordo com a Constituição de 1988. Mas, o atual governo brasileiro com maioria dos deputados e senadores do Congresso Nacional, comprados através de dinheiro público desviado de funções básicas, vem ameaçando insistentemente os povos indígenas e outras minorias que vivem em reservas da União. As terras demarcadas, embora sejam definidas como Terra Indígena, são de propriedade da União e, portanto, basta uma mudança na Constituição para abrir suas fronteiras à exploração de garimpeiros, madeireiros e outros invasores. O garimpo e o agronegócio são os dois principais inimigos dos povos indígenas e do meio ambiente na Amazônia brasileira e nos países vizinhos. Por onde andamos nesta região avistamos grandes caminhonetes SUV, principal símbolo dos fazendeiros, e nela identificamos o homem que está à espreita para entrar em nossas terras com tratores e colheitadeiras para exportar grãos que serão transformados em ração para o mundo. Um dos maiores exportadores mundiais de grãos e de carne do mundo, o Brasil tem 19,1 milhões de pessoas passando fome segundo estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Pessan) divulgado em abril deste ano. São quase 20 milhões de brasileiros afirmando que passam períodos de 24 horas sem ter o que comer. Cerca de metade da população – 116,8 milhões de pessoas – sofre atualmente de algum tipo de insegurança alimentar. “O Brasil continua dividido entre os poucos que comem à vontade e os muitos que só têm vontade de comer”, afirmam pesquisadores da entidade. Em São Gabriel da Cachoeira 5.888 pessoas recebiam Bolsa Família e Seguro Defeso (pago para pescadores na temporada de desova dos peixes, a piracema), dois benefícios em dinheiro concedido pelo governo federal, segundo pesquisa do IBGE de 2013, A cidade tinha uma população de 41,575 pessoas. Este ano o benefício da Bolsa Família foi substituído por outro para ficar colado à imagem do atual presidente de extrema direita que foi eleito com um discurso copiado do norte=americano Donald Trump e usando o seu mesmo método de espalhar fake news para destruir a imagem de seus adversários. Jair Bolsonaro, chamado na Europa de Jail, disse durante sua campanha eleitoral que seu governo não daria mais nenhum acre de terras para os indígenas. Só não disse que, além de não dar ainda fosse retirar. O resultado foi que neste ano o Brasil e o mundo tiveram que testemunhar mais uma temporada recorde de queimadas na Amazônia, no Cerrado e na Mata Atlântica, três de seus mais importantes ecossistemas. O governo desmontou os órgãos de controle e fiscalização deixando as porteiras abertas para a invasão e a destruição. O discurso deste presidente agrava um cenário muito ruim para pretos, pobres e indígenas ou qualquer pessoa que seja diferente como gays e negros quilombolas, que vivem em terras ocupadas desde a escravidão. Estamos todas vulneráveis aos atos de autoridades e até de cidadãos comuns que se dedicam ao racismo e são ávidos por praticar a violência contra pessoas que eles consideram animais. É muito difícil ser indígena num país que foi tomado dos indígenas.

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