sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

ENITA III CHÃO RUBRO

O ancião Makurap abre sua mão direita e torna a fechá-la.
Em 1989, na terra indígena dos Mekens, no Sul de Rondônia, ele diz.


-Olha, parente, como essa terra é bonita!

E espreme um punhado de terra fofa e vermelha fazendo escorrer entre os dedos um líquido sangrento como suco de açaí. Terra rica em nutrientes para os cafezais, a soja, o cacau, a pimenta-do-reino, lavouras que começam a mudar a paisagem do Sul de Rondônia no fim dos 1980.

- A Funai quer que a gente vá embora daqui. Eu não quero ir. Nós temos outros parentes Makurap morando longe, em outra reserva, mas eu quero ficar. Até aonde me lembro, da memória dos meus avós, todos nós nascemos aqui. Eu falo para meus filhos. Não vão embora, fiquem. A Funai diz que vai ser bom, mas o que eles querem é ficar com as nossas terras. Eu falo com todos para que não abandonem. Veja, Enita, essa terra não precisa do adubo que os fazendeiros usam, tudo que plantamos cresce muito e sadio. A Funai diz para vendermos as terras aos madeireiros, mas eu não quero vender nossas terras, eu quero ficar.

Enita respira fundo e pensa nas palavras para encorajar o velho. Lembra de uma história que ouviu em suas andanças pela região.

- Ouvi dizer que uns cientistas russos andaram pesquisando a terra e concluíram que é mais rica do que a mais rica das terras férteis de todos os países da União Soviética, tão equilibrada é a quantidade de nitrogênio, fosfato e outros minerais necessários para a agricultura. É mais valiosa que o ouro, comentou Enita.

O ancião Makurap sentou-se em um toco de árvore serrada pelos madeireiros e Enita continuou em pé admirando o horizonte azul, branco e rosa das nuvens recebendo os últimos raios de sol.

- O Senhor se lembra daquele casal de antropólogos que veio num avião?

-Lembro.

-Eles assinaram um documento para a FUNAI afirmando que aqui não há indígenas, que esta área não precisa ser demarcada.

-Você leu o documento, Enita?
-Voce sabe o nome deles?
-Eu sei sim! O nome deles...
-São bem conceituados, famosos.


-Eu li, sim! Dizem que as madeireiras podem continuar a derrubada, autorizando até as estrangeiras, mesmo que vocês não queiram. Depois que a madeira acabar, as terras serão vendidas para as fazendas.

-Então é por isso que estão nos ameaçando de jogar bombas de avião para deixá-los entrar.

-Quem disse isso?

-Os madeireiros. Se a gente não os deixar entrar, vão matar a gente.

-O documento diz que aqui não vive mais do que meia dúzia de pessoas e sem traços de cultura indígena.

O velho voltou a espremer na mão direita a terra rubra e estendeu o braço mirando a estrada onde roncava um caminhão de toras.

-Eles querem ver jorrar sangue.

Ambos cruzaram os braços, entreolharam-se e ficaram a ouvir, ao longe, o motor do caminhão que ainda zunia enquanto as sombras da noite baixavam sobre a aldeia. Um acauã invisível entoou seu canto lúgubre. Enita estremeceu.

- Vamos jantar, disse o ancião.
Autora Iracema forte Caingang
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